Oi pessoal,
Baudelaire, lá pelos anos 1860, escreveu uma poesia (“Os olhos dos pobres”) que falava de uma noite em que estava sentado com sua mulher num luxuoso restaurante parisiense. Só que a presença repentina de um homem pobre, barbado e maltrapilho, que estava de mãos dadas com seus dois filhinhos, todos os três muito admirados com aquela opulência, mudou para sempre a relação do casal.
Enquanto o poeta se sentia enternecido com a cena e até mesmo envergonhado com tantas garrafas e copos para tão pouca sede, sua acompanhante lhe suplicava que expulsassem dali aquela “gente insuportável”. Pobre Baudelaire, muito provavelmente sua decepção lhe castigou noites e noites.
Pois bem, se passaram muitos anos e ainda hoje se vê esse tipo de reação diametralmente oposta entre amigos, parentes, casais. A sociedade brasileira (e de todo o mundo) se divide diante de fatos como esse e difere totalmente no modo de interpretá-los.
Aqui na Venezuela, não foram poucos os casais que se separaram ao encontrar-se frente a situações consideradas impossíveis há pouco tempo atrás. Também pudera. Socialistas eram pessoas exóticas ou vilãs de filmes, documentários e, no máximo, protagonistas permitidos aos sonhos de estudantes, jovens, hippies ou que viviam longe, em lugares inalcançáveis!
Hoje esse ser exótico, está invadindo o mundo de uma forma muito acelerada. Nossa sopa às vezes está cheia deles. Certamente, muitos não nos damos conta das bruscas mudanças que estão acontecendo no mundo neste exato momento. O Baudelaire... bem, o Baudelaire com certeza está aplaudindo tudo isso, lá na tumba dele.
Odorico Bemvenido
Os olhos dos pobres
De Le Spleen de Paris (Os Pequenos Poemas em Prosa)
Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será mais fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.
Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.
De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.
Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.
Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?"
Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
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Amigos e amigas,
Depois de ler este lindo poema em prosa podemos dizer que a grande dificuldade da humanidade é a comunicação. Ninguém, por mais intimidade que tenha com o outro, consegue uma comunicação perfeita. Vejamos então quando existem níveis intelectuais diferenciados. Cada um verá a realidade segundo seu nível de desenvolvimento moral (ponto de vista). A uns, o que está sendo visto desperta carinho, tristeza, pena enquanto no outro pode despertar, raiva, desamor, abandono. São variáveis as formas de ver uma realidade que parece objetiva, mas é altamente subjetiva. Cada um vê de acordo com seus esquemas, onde estão contidas experiências, preconceitos e toda gama de desenvolvimento. Baudelaire, sem saber Piaget, descreve os seis olhos vendo o mesmo café com um olhar totalmente diferenciado. O adulto, já com a interpretação totalmente ligada aos valores do mundo, referindo-se ao brilho como ouro, algo não acessível ao mundo real dele. Ver os valores físicos que estão ali representados é um pensamento intuitivo. A criança não vê o valor monetário, mas o afetivo, de uma casa onde não pode entrar. Mostra que ele vê e sabe a distância de seu mundo. Aqui vemos representado o pensamento simbólico, muito pouco intuitivo. Representa o deslumbramento e a beleza dentro de seu pensamento simbólico. Esse pensamento consegue transformar o que vê em beleza, mesmo que ela não exista, usando “faz de conta” para resolver os problemas que venham a surgir. A criança simbólica consegue “não ver” a tristeza, mesmo que esteja em sua vida ou a sua volta. É uma forma de proteção de seu desenvolvimento. O mais jovem (bebê), não faz nenhuma interpretação e vê o mundo através de suas sensações (sensório motor) apenas. Seus olhos manifestando a admiração, mas sem saber o que aquilo tudo representa.
Os dois observadores olham como a representação da humanidade. Um vendo pessoas sofridas admirando um mundo inalcançável, cheio de opulência e desperdício, sentindo-se ate envergonhado de estar naquela situação frente a tamanha pobreza. E o outro lado da humanidade, sem a menor sensibilidade, incomodada com olhares para ela sem representação afetiva, e sim de imposição de um mundo que ninguém quer ver.
Temos que olhar para ver. Não podemos passar ao largo dos acontecimentos e esconder embaixo do tapete as misérias de nossa sociedade injusta e sem distribuição de renda. Temos que desenvolver a moral de nossos alunos e filhos, para que eles vejam e se sensibilizem com o que esta acontecendo na nossa sociedade. A moral da cooperação indica o caminho da solidariedade. Não seremos nunca solidários sem este nível de moral. Por mais que amemos uma pessoa temos que dar a ela a chance de ter seu desenvolvimento para, ao invés de ter um olhar paralelo ao nosso, tenha um olhar na mesma perspectiva cônica.
Estranho é que o que Baudelaire falou tudo isso a mais de 150 anos, e as mesmas coisas continuam acontecendo. Por que temos tanta dificuldade de desenvolvimento social? Falta educar o povo, para que possamos assistir um movimento igualitário dentro de nossa sociedade.
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